TEXTOS DESCALCISTAS

22-04-2012 12:15

PÉS DESCALÇOS

Data: 25-04-2012

De: Com a devida vénia: Cristina Brandão Lavender

Assunto: PÉS DESCALÇOS

Acordava às cinco da manhã. Acabada a higiene diária, faltava aquilo que mais detestava – pentear os finos e longos cabelos alourados por tanto brincar com o sol e com a água daquele mar que amava e que ficava mesmo em frente da casa. Suplício. Aquele desfazer dos nós parecia que arrancava o sensível couro cabeludo.
- Vá, deixa de ser mariquinhas. Não te estou a magoar. Sahira mordia os lábios, e os olhos enchiam-se de lágrimas, num misto de dor e revolta.
- Dói sim senhora! Dói e não é pouco. Gostava de ver se fosse contigo – resmungava, enquanto a irmã mais velha ia rodando à sua volta para ter a certeza que o cabelo ficava desenriçado, de uma ponta à outra.
- Anda. Chega. Já está bem. A Isabel nunca se penteia – gemia desesperada. Mas não. A tortura estava longe do fim. - Agora vamos fazer os totós. Não podes ir para a escola com o cabelo solto.
- Não quero! Odeio totós. E magoas-me. Repuxas-me os cabelos todos - Não sou eu que repuxo. São os elásticos. Deixa. Vou fazer-te antes um
rabo de cavalo. Assim reduzo o teu sofrimento para metade – comentava, como um consolo, a irmã, enquanto pegava no elástico e na escova ao mesmo tempo.
Sahira mal sentia que a mão forte da irmã a soltava, corria desesperadamente, com os cabelos humedecidos, para a sala de jantar, numa tentativa desesperada de levar a sua avante. Tomava então o mata-bicho e, imaculadamente vestida, estava pronta a ir para a escola primária.
Há muito tinham desistido de usar laços de seda porque, quando Sahira chegava à escola, já não os levava. A mãe tinha então de ouvir os queixumes da professora: porque tinha sempre o cabelo nos olhos; que lhe prejudicava a visão; que poderia apanhar piolhos; que brincava na terra e vinha para a sala, depois do intervalo, com os cabelos todos sujos – um número infindável de queixas relacionadas com os cabelos e não só.
A mãe já não sabia que fazer. “Aquela criaturinha magrinha, com aparência frágil e rosto de boneca era muito difícil de educar. Era a rebeldia em pessoa.” – pensamentos da mãe quando a chamavam à escola.
Sahira, de manhãzinha, parecia uma boneca muito asseada. Mal saía o portão do jardim, com o olho a espreitar para trás para certificar-se de que ninguém a podia ver, descalçava as sandálias de coiro azul, ainda novas, que lhe faziam bolhas dolorosas, nos pés. Liberta do grande desconforto, enfiava cada uma delas nos bolsos da bata, e depois a cabeça partia para mais um dos seus sonhos. Quando chegava à escola já não se lembrava do caminho percorrido – “ausências
frequentes”, como lhe chamava o médico. - Não se preocupe, Joana, é da idade. Isto,com o tempo, passa. Vai ver – dizia
o Dr. Campos Marques à mãe, muito preocupada. Andar descalça era uma desonra para filha de brancos. Muito maior era a
desconsideração se partia da filha de professores, bancários, neta de roceiros. Mas a Sahira pouco ou nada lhe importava esse facto. Descalça era livre; descalça sentia o solo que a ligava à terra; podia arrancar em voo até outros espaços, num monólogo sussurrado, audível, construindo várias vozes, uma para cada personagem.
Se, algumas vezes, de repente, lhe aparecia uma tartaruga gigante com a sabedoria de um mocho e a calma de um sábio, para lhe dar aulas, na praia vazia de homens, noutras, assistia ao célere bailado de milhões de tartaruguinhas, correndo desesperadamente até chegarem à água límpida e cálida daquele Oceano Atlântico, cobertura de um Equador inventado.
Outras vezes ia montada num cavalo-marinho gigante em visita ao fundo do oceano, rodeada de amigos. Já fora também um milhafre patrulhando os céus em busca dos desprezíveis, salvando amigos em ferozes batalhas contra os carcereiros. Estas e muitas outras aventuras eram vividas na companhia da Isabel que ia consigo para todo o lado, mas que ninguém via e que ela assegurava existir e viver na sua casa.
Naquela pequena ilha todos a conheciam. Embora vissem nela uma criança alegre e bem-disposta também sabiam do seu mau génio e teimavam que tinha um pacto com o diabo.
- É! Todos os meus amigos são cem vezes mais compreensivos do que vocês. Ninguém acredita em mim. - Compostura, Sahira, compostura. Não és nenhum preto para andar pelas ruas de pé descalço – resmungava o pai quando sabia da proeza.
- E que mal tem isso? Eu gosto e muito, de andar descalça. Isabel vai comigo e também vai descalça. Os nossos pés são duros que nem rochas. A mim nada me pica. Nada me corta. Não há prego que se espete. Aliás, eu sou cuidadosa – explicação saída num chorrilho de palavras contradizendo sempre o que a queriam obrigar a fazer.
- Nunca mais aprendes. Sempre na rua, sempre na rua! Não admira que não tenhas maneiras. Sábado, a partir da tarde, não sais de casa. Ficas de castigo. E diz a essa tua amiguinha que a quero também calçada.
Isto era sempre o mais custoso. Presa, presa a um mundo que se recusava a incluí-la. Sem poder brincar com os amigos. De bicicleta. Nadar. Correr. Patinar. Em casa, nunca estava um minuto quieta. Prisioneira. Este o seu maior temor. Dores de barriga. Dores de cabeça. Nem Isabel a conseguia distrair. Lápis e papel. Desenhava, desenhava. Escrevia, escrevia até mais não poder. Choro alto, choro baixinho, até que adormecia, gemendo.
Só despertava na manhã seguinte. Nesses dias, raramente comia. Não queria nada. Antes de chegar à esquina do muro que envolvia a escola, tirava os sapatos, apressadamente, do bolso da bata e calçava-os. Acordava dos seus sonhos. Já não estava descalça. Chegara ao mundo dos homens, aqueles que lhe cortavam a imaginação, pés acorrentados a um planeta que não a compreendia.
Hoje sorri daquele tempo. Era feliz nessa infância. É feliz agora já com netinhos. Continua a fugir a bordo da sua imaginação. Ajuda-a a compreender os homens. Nas suas viagens cabem a loucura de muitos, mais a sua. Ainda lhe sabe bem andar descalça. Cabelos brancos. Rugas do tempo sulcam os caminhos. Sem sapatos, sem sandálias. No mundo de agora, já pode andar descalça.
FIM

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